Saturday, October 23, 2004

A queda do Império Britânico

Fonte: OmeleteFrank Miller, Neil Gaiman e Alan Moore. Três caras que se tornaram lendas dos quadrinhos, mas que deixaram um estrago que anda meio difícil de reparar.

Frank Miller virou estrela em 1981, quando tornou-se responsável pelo roteiro e desenhos da revista do Demolidor, na Marvel Comics. Discípulo de Will Eisner (lenda viva dos quadrinhos, criador do Spirit, do conceito de graphic novel, blablabla), Miller trouxe diversas inovações estéticas e de narrativa que marcaram profundamente as HQs de ação nos últimos 25 anos. Outros trabalhos do quadrinhista norte-americano: Ronin, Elektra Assassina, Sin City, 300 de Esparta e a minissérie Batman - Cavaleiro das Trevas, de 1985, considerada sua obra maior.

O britânico Neil Gaiman iniciou sua ascensão em 1987 com a minissérie Orquídea Negra da DC Comics. Seu próximo trabalho foi também o mais famoso: Sandman, no qual criou o universo onírico de Lorde Morpheus. Gaiman roteirizou a premiada série por nove anos. Outros trabalhos de destaque foram Livros da Magia e Morte - O Grande Momento da Vida. Seu trabalho mais recente foi a minissérie 1602, seu primeiro para a Marvel (falo sobre ele mais embaixo).

Alan Moore, também britânico, é o autor de Watchmen, minissérie da DC Comics lançada em 1987 que talvez seja a única rival direta de Batman - Cavaleiro das Trevas no quesito "clássico revolucionário". Ambas desconstróem o universo dos super-heróis no âmbito da geopolítica armamentista pós-Guerra Fria. Ele também escreveu Batman - A Piada Mortal, V de Vingança, Do Inferno e Liga Extraordinária.

Todo fã de quadrinhos sabe o quanto esses senhores foram importantes. Mas o que pouca gente discute são os vícios que a indústria de quadrinhos adquiriu por causa deles. Digo mais: poucos são os que ousam questionar a suposta "genialidade" desse trio - mais especificamente, a queda de qualidade de seus mais recentes trabalhos.

Fonte: Universo HQSempre me perguntava se Neil Gaiman era capaz de escrever quadrinhos de ação, em vez de ficar somente naquela mesma ladainha onírica de Sandman (ressaltando que eu GOSTO de Sandman e o termo "ladainha onírica" foi só pra ser implicante). Ou seja, temia muito que ele fosse um escravo de seu próprio estilo. Para minha surpresa, ele desmentiu esse meu preconceito na minissérie 1602, lançada recentemente no Brasil.

O conceito da minissérie é ambientar alguns dos principais heróis e vilões Marvel na Inglaterra de 1602, em meio às intrigas que pretendiam derrubar a rainha Elizabeth. O fato é que a narrativa é um tanto diferente de tudo que se entende por Neil Gaiman. Ele coloca uns diálogos rebuscados aqui e ali, mas a trama é bastante direta e tem MUITA ação, principalmente na parte três. A reinterpretação dele dos heróis é bem simplória, restringindo-se a "europeizar" seus nomes (Carlos Javier, Peter Parquagh) e trajes, com poucas exceções legais, como Demolidor e Magneto. O pior da série, no entanto, é o final mal resolvido (não dá pra detalhar sem entregar o jogo) e deveras broxante, comparado-se à instigação com que a história foi conduzida.

O caso de 1602 não é único. Há três anos, Frank Miller resolveu assumir a maior burrada da sua carreira: a continuação de Batman - Cavaleiro das Trevas. Na época, DK2 dividiu crítica e público pelo fato de ter destoado radicalmente da sua predecessora. Em vez das sacadas políticas, cenas de ação impressionantes e ótimo visual, a continuação deu vez a desenhos pobres, situações nonsense e uma péssima colorização a la Photoshop. Os defensores ferrenhos de Miller alegavam que tudo era proposital, com a finalidade de criar algo conceitualmente novo, rejeitando tudo que deu certo na série de 1985 e, assim, não resultar numa história previsível na comparação. Poupem-me. Esse argumento seria aceitável se, e somente se, o resultado final ainda assim fosse bom. E todas as "inovações" de DK2 resultaram em lixo.

O que tem DK2 e 1602 em comum? É simples, comissário, essa fita mostra tudo. Ambas foram produzidas para seus criadores ganharem dinheiro! Eu não queria dizer, mas a verdade é essa: Gaiman e Miller são duas putas pagas. No caso de Gaiman, pelo menos ele teve uma causa nobre: arrecadar fundos para o processo contra Todd McFarlane para recuperar os direitos sobre as histórias do personagem Miracleman. Aliás, alguns anos antes, McFarlane já tinha sido responsável por expor as fraquezas artístico-comerciais de Moore, Miller e Gaiman, quando os convidou para escrever histórias de Spawn e Violador, na Image Comics. O resultado foi tão vergonhoso que dispensa maiores comentários.

O que vem acontecendo nos quadrinhos anglo-saxões é semelhante ao momento atual do rock n' roll. Todos querem descobrir ou se autoproclamar os "novos Beatles", "novo Pink Floyd" ou "novo Nirvana", mesmo que as tais bandas já tenham acabado há anos ou décadas. Há uma necessidade agoniante e agonizante de encontrar um novo ícone para as novas gerações. Nas HQs, já são comparados a Frank Miller todo roteirista emergente com algum talento (Brian Michael Bendis e Brian Azzarello, por exemplo), ou às vezes nem isso.

Isso é muito arriscado nas duas vias. No lado da tal Santíssima Trindade, enquanto eles continuarem na ativa, serão eternamente comparados às suas obras de auge criativo. Alan Moore nunca mais vai fazer um Watchmen, nem Frank Miller vai sequer esboçar algo no nível de Cavaleiro nas Trevas (a mal-fadada continuação provou na prática). E seus fãs precisam ter isso na cabeça daqui por diante. Eles não são deuses; são seres humanos falíveis, que podem sim escrever histórias fracas ou trabalhar apenas para garantir o aluguel da casa. Além disso, eles não precisam nem devem se tornar cópias de si mesmo.

Miller, por exemplo, ainda consegue trabalhar bem em Sin City, apesar de recauchutar muitos de seus clichês aqui e ali. Moore se deu de bem ao deixar as tramas ultracomplexas-literárias-pretensiosas um pouco de lado e investir na simplicidade aventureira da Liga Extraordinária. Embora a pretensão ainda exista de forma dissimulada (nas referências aos livros e fatos históricos, por exemplo), a Liga é em suma um gibi divertido, apenas. Tom Strong e Top 10, do mesmo Alan Moore, também seguem essa linha mais pop, embora pessoalmente eu não goste desses dois. Em todo caso, a iniciativa de Moore se autoreinventar - sem subestimar seu púbico, vale lembrar - é bastante louvável.

Pelo outro lado, público, crítica e artistas precisam, cada vez mais, olhar para o futuro. O trio em questão pode em breve se aposentar - Alan Moore já tocou no assunto há pouco tempo. E mesmo que não, eles não vão viver para sempre. E ficar procurando o novo Frank Miller ou afirmar que ninguém fará algo tão genial quanto Sandman não ajuda muita coisa. Tampouco criar clones, continuações ou homenagens às obras-primas. Por mais legal que seja Poder Supremo ou 100 Balas, essas revistas não conseguem negar suas raízes (Watchmen e Demolidor de Frank Miller, respectivamente).

Quando eu afirmei a um amigo meu que o Kraftwerk é considerada a maior banda de música eletrônica de todos os tempos, ele prontamente respondeu: "não gosto desse tipo de rótulo. Quem fala isso parece subestimar a capacidade do ser humano de se superar criativamente".

Pensemos nisso.

Monday, October 11, 2004

Nós podemos ser heróis, só por um dia

Vejam a nossa rotina. Na infância recebemos ordens dos nossos pais; na escola, os professores e o diretor nos dizem a que horas devemos ou não ir ao banheiro. Os meninos mais fortes faziam nossos recreios se tornarem pesadelos. Na adolescência e fase adulta, sofremos a opressão da polícia, dos nossos patrões, da nossa família - além dos pais, tem a tirania dos filhos e do(a) marido/esposa - e do sistema inteiro. Nada mais lógico que cada um tenha um lado selvagem reprimido que raramente ou nunca consiga descarregá-lo. E se eu vejo alguém com a coragem e/ou loucura suficiente para cometer atos contra o sistema, logo adquiro uma identificação imediata com o dito cujo.

Vivemos tempos de terroristas e guerra de traficantes matando inocentes sem a menor culpa. A revolta e a impunidade causa a descrença nas leis. A justiça só vai surgir se acontecer pelas próprias mãos. Os fins justificam os meios. E por isso os chamados anti-heróis estão na crista da onda. Batman, Wolverine, Justiceiro, Lobo: personagens rebeldes e seguidores de seu próprio código de conduta que não hesitam em passar por cima do sistema para fazerem o que acham certo. A popularidade deles aumenta ainda mais no público jovem, contestador por natureza, portanto os editores sempre dão um jeitinho de produzir situações onde eles confrontam o sistema. Exemplo clássico: a luta final Batman x Super-Homem em Cavaleiro das Trevas.

O que ninguém parece entender é que não existe trevas sem a luz como contraponto. E vice-versa. Para cada Batman, precisa haver um Super-Homem. Para cada Wolverine, precisa haver um Ciclope. Para cada Justiceiro, um Demolidor. Isso é tão óbvio que me assusta o fato de todo mundo ignorar isso.

Por que as pessoas insistem em ver o Super-Homem como um escoteiro retardado e marionete do status quo enquanto acham bonito ver Batman espancar criminosos? Ora, pelo mesmo motivo que faz muita gente torcer pelo vilão. Porque no seu íntimo, todos querem ser o contestador. A ordem é chata e oprime. Causar o caos é que é divertido e cool. Ter poder demais nas mãos também é chato; torna tudo fácil demais. É preferível ter poder suficiente para haver aquela instabilidade que não lhe permita entrar no desafio já sabendo que vai ganhá-lo.

Eu também adoro os anti-hérois e vilões, por todos os motivos já citados acima. A questão que eu trago aqui é justamente o oposto do que todo leitor de quadrinhos traz. Não quero obrigar ninguém a escolher entre Batman e Super-Homem. Eu só gostaria que percebessem que cada personagem tem suas qualidades e defeitos que o torna tão carismático. Não é nem um pouco justo deixar nossos sentimentos reprimidos tomarem conta totalmente e ficarmos cegos para o que representam os heróis de verdade. Aqueles que estão "fora de moda".

O que seria da equipe de alunos se não tivessem o cara certinho que faz todo o trabalho pelos outros? O que seria do maratonista se aquele grego bonachão não estivesse ali para socorrê-lo do irlandês pirado? O que seria da classe afro-americana se apenas houvessem os Panteras Negras e Martin Luther King sequer tivesse nascido? O que seria do mundo só com Hitler e Bush, mas sem Gandhi e Madre Tereza?

A verdade, meus caros, é que ninguém quer ser o herói certinho porque raros são os que tem a firmeza de caráter para tal. Um herói existe por uns mil, lutando pelos direitos dele e dos demais 999. Fulano nunca vai querer estar na dianteira de um problema porque sabe que vai ter alguém lá por ele. E é bem mais cômodo contestar o sistema do que questionar civilizadamente qual a razão lógica desta contestação ou se a violência é mesmo a única saída.

Apesar de ser realmente divertido ver Wolverine desafiar as ordens de Ciclope, foram a liderança e as estratégias de Ciclope que já salvaram os X-Men tantas vezes. Em todas as vezes que Batman foi relevante na Liga da Justiça, foi quando usou o cérebro em vez dos punhos. E fora o fato dele esquartejar pessoas de formas criativas, me digam qual é a graça de ler uma HQ de Lobo.

Contestar o sistema é algo que considero fundamental, até para os heróis não terem uma percepção limitada dos problemas que enfrentam. Eu só não agüento mais essa estupidez simplista dos roteiristas de transformar heróis em capachos e anti-heróis em fodões. Acho que se eu fosse escolher, eu prefiriria um Super-Homem com sua visão humanista à atitude niilista do Batman pós-Guerra Fria.

É uma pena que eu olhe para os céus e não veja nada além de pássaros e aviões jogados em torres. Gostaria muito que o Super-Homem viesse nos salvar de vez em quando. Não um energúmeno com fetiche por mísseis nuclares.


Esse texto é dedicado a Christopher Reeve (1952-2004), um verdadeiro herói em todos os sentidos.
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