Monday, October 11, 2004

Nós podemos ser heróis, só por um dia

Vejam a nossa rotina. Na infância recebemos ordens dos nossos pais; na escola, os professores e o diretor nos dizem a que horas devemos ou não ir ao banheiro. Os meninos mais fortes faziam nossos recreios se tornarem pesadelos. Na adolescência e fase adulta, sofremos a opressão da polícia, dos nossos patrões, da nossa família - além dos pais, tem a tirania dos filhos e do(a) marido/esposa - e do sistema inteiro. Nada mais lógico que cada um tenha um lado selvagem reprimido que raramente ou nunca consiga descarregá-lo. E se eu vejo alguém com a coragem e/ou loucura suficiente para cometer atos contra o sistema, logo adquiro uma identificação imediata com o dito cujo.

Vivemos tempos de terroristas e guerra de traficantes matando inocentes sem a menor culpa. A revolta e a impunidade causa a descrença nas leis. A justiça só vai surgir se acontecer pelas próprias mãos. Os fins justificam os meios. E por isso os chamados anti-heróis estão na crista da onda. Batman, Wolverine, Justiceiro, Lobo: personagens rebeldes e seguidores de seu próprio código de conduta que não hesitam em passar por cima do sistema para fazerem o que acham certo. A popularidade deles aumenta ainda mais no público jovem, contestador por natureza, portanto os editores sempre dão um jeitinho de produzir situações onde eles confrontam o sistema. Exemplo clássico: a luta final Batman x Super-Homem em Cavaleiro das Trevas.

O que ninguém parece entender é que não existe trevas sem a luz como contraponto. E vice-versa. Para cada Batman, precisa haver um Super-Homem. Para cada Wolverine, precisa haver um Ciclope. Para cada Justiceiro, um Demolidor. Isso é tão óbvio que me assusta o fato de todo mundo ignorar isso.

Por que as pessoas insistem em ver o Super-Homem como um escoteiro retardado e marionete do status quo enquanto acham bonito ver Batman espancar criminosos? Ora, pelo mesmo motivo que faz muita gente torcer pelo vilão. Porque no seu íntimo, todos querem ser o contestador. A ordem é chata e oprime. Causar o caos é que é divertido e cool. Ter poder demais nas mãos também é chato; torna tudo fácil demais. É preferível ter poder suficiente para haver aquela instabilidade que não lhe permita entrar no desafio já sabendo que vai ganhá-lo.

Eu também adoro os anti-hérois e vilões, por todos os motivos já citados acima. A questão que eu trago aqui é justamente o oposto do que todo leitor de quadrinhos traz. Não quero obrigar ninguém a escolher entre Batman e Super-Homem. Eu só gostaria que percebessem que cada personagem tem suas qualidades e defeitos que o torna tão carismático. Não é nem um pouco justo deixar nossos sentimentos reprimidos tomarem conta totalmente e ficarmos cegos para o que representam os heróis de verdade. Aqueles que estão "fora de moda".

O que seria da equipe de alunos se não tivessem o cara certinho que faz todo o trabalho pelos outros? O que seria do maratonista se aquele grego bonachão não estivesse ali para socorrê-lo do irlandês pirado? O que seria da classe afro-americana se apenas houvessem os Panteras Negras e Martin Luther King sequer tivesse nascido? O que seria do mundo só com Hitler e Bush, mas sem Gandhi e Madre Tereza?

A verdade, meus caros, é que ninguém quer ser o herói certinho porque raros são os que tem a firmeza de caráter para tal. Um herói existe por uns mil, lutando pelos direitos dele e dos demais 999. Fulano nunca vai querer estar na dianteira de um problema porque sabe que vai ter alguém lá por ele. E é bem mais cômodo contestar o sistema do que questionar civilizadamente qual a razão lógica desta contestação ou se a violência é mesmo a única saída.

Apesar de ser realmente divertido ver Wolverine desafiar as ordens de Ciclope, foram a liderança e as estratégias de Ciclope que já salvaram os X-Men tantas vezes. Em todas as vezes que Batman foi relevante na Liga da Justiça, foi quando usou o cérebro em vez dos punhos. E fora o fato dele esquartejar pessoas de formas criativas, me digam qual é a graça de ler uma HQ de Lobo.

Contestar o sistema é algo que considero fundamental, até para os heróis não terem uma percepção limitada dos problemas que enfrentam. Eu só não agüento mais essa estupidez simplista dos roteiristas de transformar heróis em capachos e anti-heróis em fodões. Acho que se eu fosse escolher, eu prefiriria um Super-Homem com sua visão humanista à atitude niilista do Batman pós-Guerra Fria.

É uma pena que eu olhe para os céus e não veja nada além de pássaros e aviões jogados em torres. Gostaria muito que o Super-Homem viesse nos salvar de vez em quando. Não um energúmeno com fetiche por mísseis nuclares.


Esse texto é dedicado a Christopher Reeve (1952-2004), um verdadeiro herói em todos os sentidos.
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